Cumprida a primeira década de vigência da Lei de Recuperações e Falências, Lei nº 11.101/2005...
Desembargador Antônio Carlos Esteves Torres
Diretor Adjunto do CEDES
Cumprida a primeira década de vigência da Lei de Recuperações e Falências, Lei nº11.101/2005, analistas e aplicadores do diploma legal estão em procedimentos de revisão dos resultados alcançados até agora. A nova Lei, que veio substituir o DL nº 7.661/45, LF, vetusto estatuto da quebra, cujas finalidades se exauriram ao longo dos sessenta anos de efetiva aplicação, inaugurou uma nova fase do direito empresarial brasileiro.
Entre as duas leis, mediaram mudanças traumáticas da história brasileira, desde o suicídio deum Presidente, as alterações no regime político, as experiências econômicas que, todos, lançaram o caminho das transposições irreversíveis, seja com a mudança da capital do Brasil, para o Planalto Central, seja pelo movimento militar de 1964, até o efetivo impeachment de um Chefe do Poder executivo, até a ameaça de repetição do remédio constitucional dos dias de hoje.
Neste ínterim, a economia do país saltou do campo para as fábricas urbanas, as relações entre os atores do cenário em que os meios de produção se agitam se alteraram grandemente, a tecnologia mudou o palco das ações e comportamentos.
Para este resumo da vida nacional, seria mais do que compreensível que as novas facetas socioeconômicas exigissem a modernização do ordenamento jurídico, com o objetivo de amoldá‐lo às práticas modernas.
Em grandes linhas, a denominada LRF, doravante assim referida, deu nova configuração ao tratamento destinado a situações de dificuldades financeiras das empresas. Se, como se depreendia da LF, como era conhecida, o artigo inaugural do texto legislativo considerava falido, quem não pagasse no vencimento, ou se dedicasse a manobras fraudulentas em detrimento do crédito, incluindo a convocação de credores para propostas remissivas ou cessionárias, hoje, as disposições vigentes, em franco desvio filosófico da matéria, iniciam pela recuperação da empresa, demonstrada, desta forma, a finalidade preservativa das organizações do gênero. Hoje, a convocação dos credores, para concretizarem sua participação no procedimento, é acolhida pelo próprio juiz (art. 52, §1º, II, LRF). Em suma, a falência passa a figurar como remédio extremo, após a tentativa recuperatória, quando se demonstra viável.
O histórico dos episódios de quebra é repleto de exemplos marcantes. Há casos notórios e outros tantos não tão conhecidos ou importantes, mas, de toda sorte, componentes do cenário econômico de qualquer país. São múltiplas as causas que levam empresas à falência, de má gestão, aos processos de competição desleais ou mesmo, sem deslealdade, com a supremacia do domínio tecnológico, nem sempre alcançado. Assim ocorreu com grandes expoentes do mundo têxtil do Brasil, Nova América, América Fabril, por exemplo. Políticas vacilantes de governo também influenciam o comportamento empresarial. Para este vasto universo, má gestão, impossibilidade de acompanhamento tecnológico, competição acirrada e falta de apoio oficial. Servem de demonstrativos exuberantes vivências como as das companhias aéreas, desde a Panair, cujo fim se deu em meados da década de sessenta do século passado, até a Varig, cujos atos finais têm epílogo ainda em cena.
As duas companhias, Panair e Varig, fazem parte de nosso panorama econômico. Entre elas, dois pontos em comum: gestão claudicante e intervenção governamental. Como se vê, embora importantes, os dois fatores independem da mudança da filosofia legislativa. O mau sucesso poderia ocorrer com ou sem o regime recuperatório atual. No entanto, sem sombra de erro, com a tendência preservativa da empresa ora vigente, talvez a Panair pudesse ter sobrevivido.
As disposições legislativas que vigem para recuperação e falência configuram exercício de organização da ambiência empresarial, adequando‐a a critérios filosóficos e operacionaiscondizentes com a realidade atual. Como já se especificou, a mudança conceitual do universo falimentar cedeu lugar à dinâmica recuperatória. Percebe‐se que a recuperação, topicamente, antecede a destinos falenciais, na Lei nº 11.101/2005. A recuperação judicial, como se extrai do art. 47 da LRF, tem por objetivo viabilizar se supere situação de crise econômico financeira do devedor, com o fito de permitir a manutenção de fonte produtora, do emprego de trabalhadores, interesses dos credores, promovendo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
A nova ordem filosófica marcha de mãos dadas com mecanismos ‐ ainda que existentes na legislação anterior – a que se atribui contextura mais técnica e visível. Ontologicamente, o síndico da massa falida e o comissário da concordata faziam a mesma coisa: administravam a realização das etapas correspondentes a cada regime. É só reler os artigos 59 e 161, §1º, IV, do Decreto‐lei revogado. Assim, a nova lei convolou esses papéis na figura do administrador judicial, como se observa do art. 21, da LRF.
As leis em geral, após a sua edição, ganham vida própria. Os especialistas identificam a metamorfose da ideia do legislador e os fins da lei. Mens legislatoris, mens legis, dizem. Essas duas lâminas nem sempre se ajustam. O legislador já quis tabelar os juros em 12% ao ano, o que consistia em grossa agressão ao mundo da matemática financeira, no tocante à realidade operacional do que o simplório néscio reconhece apenas como preço do dinheiro. A mais alta corte do país teve de intervir, para evitar que a cincada provocasse danos às relações econômicas.
A aplicação da LRF, no encontro material com os fatos, também oferece alguma dificuldade. A qualificação técnica dos administradores e a impossibilidade de empresas em recuperação ou em estado pré‐falencial arcarem com honorários naturalmente altos, ainda mais quando a opção recai sobre pessoa jurídica. Dificilmente, o magistrado tem condição de avaliar teórica e doutrinariamente a viabilidade recuperatória de um empreendimento, de modo a considerá‐lo apto à tentativa de reestruturação. Releiam as exigências dos artigos 50 e 51, da LRF, para se ter a certeza de que só um experto poderá analisar balanços, balancetes, extratos de contas bancárias, para a conclusão de factibilidade. Planos de recuperação, com etapas tão complexas, ficam submetidos ao prazo de 60 dias, improrrogável, após o deferimento do processo recuperatório. Os juízes têm que se haver com a experiência acumulada no exercício da função, para tangenciar a esfera da tolerância, evitando a consequência maior, a decretação da falência. Conjuguem o comando do art. 60, combinado com o do art.141, § 1º, da LRF, e respondam a indagação que o Judiciário ainda se faz, de certa forma: tanto no processo de recuperação, quanto nos de falência, a venda de ativos, envolvendo filiais ou outras unidades, é possível liberar o adquirente de obrigações trabalhistas, como configurado naqueles artigos? Osmagistrados laborais se opõem. O STJ tempera a determinação legal, possibilitando ao juiz o exame da possibilidade, casuisticamente.
A maior dificuldade na aplicação das disposições daLRF não está na mecânica de incidência aos fatos. A LRF foi elaborada para um cenário de possibilidade econômica. No momento nacional, no entanto, com inflação no segundo dígito, o câmbio instável, o desemprego em alta e o produto interno bruto em franca descensão, é pouco provável considerar viável planos de recuperação ortodoxos, mesmo dentro dos vastos critérios legais.
Como se viu, a recuperação judicial é um procedimento complexo, só admitido a quem tiver mais de dois anos de atividade regular; não tenha utilizado a mecânica há menos de cinco anos; não ter como sócio, pessoa condenada por crimes previstos na LRF. Todos os créditos se sujeitam a ele (art. 48 e 49, da LRF). A recuperação extrajudicial, embora exigindo o preenchimento das condições acima (art. 161, da LRF), proíbe antecipações de pagamentos desfavoráveis aos demais credores; impede o requerimento, na pendência de processo de recuperação judicial, exclui créditos provenientes de negociação fiduciária, envolvendo bens imóveis (art. 161, § 1º, da LRF). De toda sorte, exige‐se a homologação judicial do acordo (art. 161, §4º, da LRF).
Para que a fórmula fosse estritamente particular, sem envolver o Judiciário, a LRF previu a possibilidade de acordo privado, o que, diga‐se de passagem, se envolver a totalidade dos credores, nunca foi objeto de impedimento.
A LRF ainda prevê, no art. 70 e seguintes a recuperação de micro e pequena empresa, como definido em lei. As condições previstas no art. 53, da LRF, são reduzidas, e não acarreta a suspensão do curso prescricional, ou de ações de execução de créditos não abrangidos. Em recente alteração constitucional, LC 147/14, incluindo modificações na LC 123/2006 – Estatuto da Micro e Pequena Empresa e Regime do Simples Nacional, introduziram‐se adaptações para tornar materializável o mecanismo para a espécie de atividade: a remuneração do administrador se limita a 2% do valor devido; institui‐se uma nova classe de credores, no comitê; os credores trabalhistas deliberam sobre o plano; o prazo para requerimento passa a ser de cinco anos e não de oito; prazos para parcelamento são aumentados em 20%, além dos referentes aos da fazenda pública; admite‐se a inclusão de todos os créditos.
Em termos gerais, a declaração de falência precede a verificação de alguma das seguintes situações: não pagamento de obrigação materializada em título; execução não paga, nem satisfeito o depósito ou nomeado bem à penhora; prática de atos prejudiciais ao quadro de credores (liquidação antecipada de ativos; uso de meios ruinosos ou fraudulentos para saldar débito; transferência deestabelecimento a terceiros, sem reservas, para solver o passivo; ausência do devedor, sem deixar representantes; operações em fraude, nas negociações societárias; descumprimentode plano de recuperação judicial). É, mais ou menos, o mesmo conjunto a que se referem os artigos 1º e 2º da antiga LF. Mantém‐se a possibilidade da autofalência (art.8º, LF, e 97, I, LRF).A falência continua a ser o que sempre foi, a quebra. O proces so é para a garantia dos credores e da denominada par conditio creditorum, a mantença da igualdade de tratamento entre os credores de uma mesma categoria.
Guardadas as devidas proporções, constituíram as principais modificações introduzidas no processo falimentar, além da consequência pelo não cumprimento do plano de recuperação, reorganização das funções do administrador (o síndico, anterior), o remanejamento da classificação dos créditos, com a prevalência do crédito trabalhista. Mas a ontologia do procedimento não sofreu alterações: decreta‐se a falência pelo descumprimento das obrigações assumidas na medida recuperatória (art. 73, da LRF), a exemplo do que ocorria com o não cumprimento da concordata (art. 175, §1º, da LF).
No mais, o administrador arrecada bens e documentos (art. 108, LRF), como o fazia o síndico (art. 70, LF), especificados os efeitos quanto à pessoa do falido, cuja perda da capacidade para exercer atividade empresarial (art. 102, da LRF) é especificada. Essaslimitações no seio da LF eram difusas e exigiam interpretação do art. 34.
As novas disposições processuais, cujo diploma legal, Lei nº13.105 de 16 de março de 2015, entrou em efetivo vigor neste último dia 18 deste mês de março de 2016, passaram a ser aplicadas supletivamente aos procedimentos regulados na LRF, como se depreende dos artigos 189, da LRF, e 1.046, §2º, do Novo Código de Processo Civil.
Fonte: Poder Judiciario do Estado do Rio de Janeiro.