Imagine, leitor, que você tenha o direito, já confirmado e reconhecido pela Justiça, de receber R$ 17 bilhões do governo. Imagine também que você possui longos 20 anos de prazo para fazer a cobrança da dívida. Agora imagine que você perdeu esse prazo e não receberá nenhum centavo.
Foi o que aconteceu, segundo o STJ (Superior Tribunal de Justiça), com uma empresa em liquidação no Rio de Janeiro, que há quase 60 anos pleiteava ser indenizada pela desapropriação do terreno onde foi construído o aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador. A União alegava ser proprietária do terreno, mas ficou comprovado o contrário.
Com o dinheiro que a empresa deixará de receber, equivalente a pouco mais da metade da fortuna do empresário Eike Batista, seria possível comprar, por exemplo, 680 mil carros populares ou 12 milhões de Ipads 2.
O processo foi iniciado em 1951 e desde então se arrastava no Judiciário, tendo passado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), onde houve a fase de liquidação, na década de 1980. Já nessa época, a Justiça apontou a falta de ação da Companhia Brasília, que não tomava a iniciativa para fazer o processo andar.
Finalmente, houve o trânsito em julgado da sentença de liquidação, em 1990, bastando então que a empresa iniciasse a ação de cobrança. Inexplicavelmente, no entanto, isso não aconteceu. Em 1997, representantes da Companhia Brasília retiraram os autos para “diligenciar uma fórmula adequada para por fim à demanda”. O processo ficou, então, desaparecido por quatro anos, até ser encontrado em um banco de igreja por um pastor evangélico.
Outro fato inusitado que contribuiu para a prescrição da dívida ocorreu no ano passado. Com um recurso especial da União que questionava o valor da indenização em trâmite no STJ, a empresa pediu a troca do escritório que a representava, o Siqueira Castro Advogados, uma das maiores bancas do país. O escritório recorreu ao STJ alegando que sua procuração era irrevogável, mas não conseguiu voltar ao processo por decisão da 1ª Seção da Corte.
O ministro do STJ Mauro Campbell destacou que, até hoje, a Companhia Brasília não iniciou a ação de execução. Para ele, o Código de Processo Civil, na forma vigente à época, distinguia nitidamente a ação de liquidação da ação de execução, estabelecendo até mesmo nova citação do executado. Desse modo, a prescrição se consumou em 2 de abril de 2010, 20 anos depois da homologação da sentença de liquidação.
“Veja-se que pela simples descrição dos atos processuais praticados nos autos, em momento algum a Companhia Brasília deu início à ação executiva, mesmo após o magistrado singular ter sinalizado à parte então interessada que os autos estariam aguardando o início do processo executivo, momento em que, misteriosamente, desapareceram”, afirmou o relator. “Assim, até a data do presente julgamento, não houve promoção da ação de execução, razão por que inevitável o reconhecimento da prescrição da pretensão executiva”, completou.
Segundo o ministro, liquidada a sentença, o autor teria 20 anos para promover a execução. “A Companhia Brasília teve 20 anos para dar início à ação de execução e obter a citação da União, até mesmo para que eventualmente fossem oferecidos embargos à execução do julgado, o que não aconteceu. Todavia, o lapso prescricional correu na sua integralidade, não tendo ocorrido qualquer causa interruptiva da prescrição da pretensão executiva”, explicou o relator.
“O sumiço dos autos, por mais de quatro anos, não pode ser considerado motivo interruptivo da prescrição, tendo em vista que a própria Companhia Brasília foi a responsável pelo desaparecimento, fato esse incontroverso”, concluiu.
A reportagem não conseguiu contato com nenhum representante da Companhia Brasília. O escritório Siqueira Castro afirma que a questão ainda está sub judice e que a decisão do STJ não é definitiva, por isso prefere não se manifestar, devido a questões de confidencialidade.
Fonte: Última Instância